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Oh, bom sofrimento!

A Palavra em Mikhail Mikhailovich Bakhtin é concreto do homem; em Bakhtin o homem é exposto interna e, externamente, a partir do vocábulo – o Pensador Russo foi um legítimo Neurocientista cognitivo de seu tempo...


O homem se revela em enunciados, seus textos são suas palavras que corporificam sua plenitude no convívio social; aliás, a Marca do Teórico é, justamente, arquitetar seu escopo a partir do entendimento basilar das relações interpessoais na produção de um mundo de significados – o Signo que dá forma a cadeia semiótica.


É a interação dos indivíduos que configura os Textos (o mundo da linguagem nos diversos temas da vida cotidiana); é só a partir do eu com o outro que surge a descodificação dos Signos que, mutáveis, ganham corpo na História de nós, atravessando a barreira do tempo, deixando pegadas da genealogia das consciências.

O Vocábulo, a Língua, segundo Bakhtin, é um instrumento puro de Ideologia, sempre orientado no pacto gerativo de valor de troca entre locutor e interlocutor (maquila a realidade, fabricando-a, ao mesmo tempo); sendo este, um depósito de carga histórica que, ao ser falado pelo indivíduo, já porta em si, a marca do passado - uma síntese de discursos já realizados e reorganizados antes de nossa chegada -, e que, sempre será passível de atualização.


Cada contexto enquadra, de antemão, uma conduta para a leitura, seja esta a partir de Falas, Pinturas, Livros, Músicas ou Gesticulações – todas estas organizações de recursos extralinguísticos são parte de um enunciado protocolar que modela a condição humana e significados que vazam.


Bakhtin elencou propriedades da palavra, uma destas refere-se a “interiorização”, cuja função seria a de apresentar e ser o único meio pelo qual podemos ter contato com os conteúdos interiores do sujeito, ou melhor, a sua consciência, o qual só se constitui pois depende, justamente, dos vocábulos que materializam volições e desejos.


... era uma noite fria de inverno, solitária...


Charles Monroe Schulz foi, quiçá, um dos mais brilhantes cartunistas do mundo. Suas famosas tirinhas do inesquecível personagem Peanuts ou Snoopy (criado no começo da década de 1950), geram, ainda hoje, inquietações e reflexões acerca da existência humana. No seu apogeu, a tirinha era lida, diariamente, por 300 milhões de pessoas em 75 países e 21 idiomas. Schulz desenhou e publicou as tirinhas de Peanuts por mais de 50 anos, até se aposentar em dezembro de 1999, por questões de saúde. Morreu dois meses depois, aos 77 anos.


Sabemos que hoje, a partir de dados coletados na Biografia do Artista que mágoas e ressentimentos marcaram a vida de Schulz; a graça e desgraça de Charlie Brown e seus amigos em Peanuts está justamente na expressão de emoções adultas: desilusão, ansiedade e frustração, bem misturadas em cada um dos quadrinhos.


Peanuts - como é reconhecido nos Estados Unidos -, é a expressão e representação da ansiedade, medo e desajustes sociais a qual um indivíduo pode passar nos atropelos de uma vida – sendo justamente estes temas o mote gerador de fascinação nos leitores –, existe um reconhecimento das enunciações ali propagadas por Schulz; repousa, em cada leve desenho de nanquim, o socorro, o pedido de ajuda ou confissão.


De forma acanhada, selecionamos uma tirinha de Peanuts para acomodar, em brevíssimas linhas, sombras de Bakhtin.



Existe apenas uma única sentença na tirinha analisada, a qual está no último quadro: “o que mais me preocupa é que este foi o ponto alto do meu dia!”.


Este enunciado, esta fala individual expressa em pensamento pelo personagem icônico Peanuts, ou Snoopy, o canhorrinho Beagle é posicionada no último de oito quadros (por ser uma imagem captada no Google, não temos certeza do ano de sua publicação).


Charlie Brown deposita no chão, para seu cachorro, uma tigela contendo sua ração; chega de forma abrupta com o alimento e sem pestanejar já retorna de onde saiu.


Bakhtin nos orienta que os fatos da língua estão intrínsecos ao estado interior do psiquismo, ao mesmo tempo em que, o auditório social reorganiza e responde as nossas funções dialogísticas; é latente nas trocas de falas darmos estabilidade mental. Schulz, em seus traços, é pura confissão.


--- Este é um ponto chave para entendermos Schulz: sabendo de sua vida introspectiva e melancólica, sua fala é sempre um diálogo de extravasamento sígnico com um leitor: a cada tirinha, ocorre uma troca mental, numa negociação social para reorganizar seu estado psíquico.


--- A enunciação do cachorrinho Snoopy configura um estado de expectativas sociais vivenciado por uma seara de humanos que, neste confronto com o Cartoon, realizam trocas de interesses e aumentam suas forças sociais.


--- Snoopy fala com todos, mesmo quando fala de si – existe uma interação social. O texto é plausível de reconhecimento, sendo já corpo de aspectos de vida histórico: a desolação frente à existência.


O criador Schulz revelou: “vivia irritadiço, deprimido e sujeito a ataques de pânico: eu tenho um sentimento horrível de desgraça iminente”, declarou numa entrevista.


O grande Tema (a abordagem da mensagem, o que dela podemos retirar de conteúdos realizáveis) de Peanuts, na referida tirinha é o desvelamento da amargura, da solidão, da desolação, do deserto frio do desgaste das relações: Charlie Brown, com semblante apático, deposita o alimento do cachorro (é apenas um cachorro); não sinaliza falas, alegria, satisfação - está cumprindo uma obrigação.


--- Snoopy, enquanto locutor, nos afoga num contexto de aflição e expectativas. É ele, filósofo nato, que nos reposiciona no palco social: que mais podemos esperar além de farelos de alegria e satisfação momentâneas?


Bakhtin postula a fala categoricamente como força Ideológica; todo ato é ação ideológica. A imagem que o locutor (Schulz) tem de seu interlocutor (leitor) fará todos os ajustes necessários para a composição de uma ideologia nas mais variadas manifestações de seu texto – a vida é assim: oh, good grief!


--- A apatia de Charlie, a consciência de Snoopy frente ao contexto desenhado configura de fato, a expressão de uma mentalidade fracassada no campo social, deveras, com qualidades depressivas que gritam em cada novo quadrinho à busca de um amigo para ouvi-lo.


A fala de Peanuts é um puro produto ideológico de que a vida é um poço pálido, sem graça, na qual a saída é sempre de chofre, sem risos ou alegrias, atendendo apenas aos conformes medíocres de uma ocasional refeição que unirá eleitos para uma troca boba e findada na maior realização de uma rotina.


O grande texto de Peanuts é uma tessitura de encontros. Ambos, locutor e interlocutor criam seu interior a partir de uma imagem inundada nas configurações culturais de seu tempo.


Ler Snoopy é presumir um mundo embaçado, miserável – sem expectativas.


Por Gustavo Pilizari

Jornalista; Mestre em Comunicação, Cultura e Semiótica; Pós em Psicopedagocia e Neurociência; MBA em Liderança; Extensão em História e Semiótica; Professor de Pós Graduação e Consultor em Comunicação e Neurociência.

Contato: 18 99789-3645

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